domingo, 23 de março de 2014

Entre a luz e a escuridão

Cinquenta anos atrás várias pessoas foram às ruas na chamada “Marcha da família com Deus pela Liberdade”, contra o governo João Goulart, considerado uma ameaça comunista. Esses grupos conservadores deram força e incentivo para a intervenção militar no Brasil, que durou 21 anos. A mesma marcha foi reeditada ontem (22/03/2014) na Praça da República em São Paulo, com o objetivo de levar uma carta ao Exército pedindo nova intervenção militar no Brasil, em nome da família e da pátria. Os manifestantes marcharam sob o grito: “não queremos eleição, queremos intervenção". Alguns dos seguintes pontos foram defendidos pelos conservadores: intervenção militar no governo, valorização da família tradicional, proibição completa do aborto, proibição da legalização das uniões homossexuais, preponderância dos valores religiosos.


Estamos em uma democracia constitucional, é legítimo o direito desse grupo protestar, mas nos cabe uma importante reflexão, a ditadura militar resolveria mesmo os problemas do Brasil? Teríamos uma vida melhor? Uma sociedade melhor?
As forças armadas governaram o Brasil por 21 anos, de 1964 a 1985, período que ficou marcado por obras faraônicas, regadas pelos tradicionais superfaturamentos, algumas trouxeram benefícios para o país, outras foram verdadeiras tragédias. No campo econômico da mesma forma, êxito em uma fase, tragédia em outra. No geral a gestão militar foi similar a tradição brasileira, muita corrupção, pouca organização e planejamento, excesso de burocratização, ou seja, nada de novo, nem de revolucionário.

Qual a grande diferença entre o governo da ditadura militar e a democracia, baseada no Estado de Direito e na Ordem Constitucional que temos hoje? Ai entra o ponto fundamental, a ditadura implementou de forma ampla a censura, em todos os aspectos, limitando a liberdade de expressão, de pensamento, de manifestação. Adotou a tortura como instrumento padrão do Estado contra os opositores e aqueles considerados subversivos. Exilou vozes contrárias e críticas ao regime. Estabeleceu o medo como pilar fundamental e suprimiu qualquer pensamento divergente ou qualquer questionamento por mudanças.

Deputado Ulysses Guimarães
ao promulgar a Constituição da República
Não digo que a democracia seja perfeita, mas possibilita uma construção coletiva. É claro que o governo nem sempre será aquele que queremos, mas temos a possibilidade de questionar, de protestar, de criticar, de propor mudanças e de gradativamente firmar uma sociedade melhor. Na promulgação da atual Constituição Federal, Ulysses Guimarães proferiu a seguinte frase: “Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados". Não é a Constituição perfeita, mas possibilita liberdade, respeito, proteção a direitos e o sonho de dias melhores.


Tem um exemplo que demonstra que não vale a pena entrar novamente na escuridão da ditadura. A luta de Zuzu Angel escancarou a face cruel dos militares. Ela foi uma famosa estilista brasileira, com reconhecimento internacional, que pouco importava com o regime de ditadura militar no país, não afetava a sua vida ou profissão, ela ouvia falar das prisões, exílios e torturas, mas a vida seguia relativamente normal.

Tudo mudou completamente para Zuzu Angel quando o seu filho, Stuart Jones, estudante de economia, filiou-se ao MR-8, grupo que combatia a ditadura militar. Stuart foi preso em 14 de abril de 1971, torturado e morto pelo Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) e dado como desaparecido pelas autoridades.

Após o desaparecimento do filho, Zuzu começou um enfrentamento com a ditadura pelo direito de poder pelo menos velar e enterrar o corpo de Stuart. Ela que circulava pela alta sociedade passou a denunciar os abusos cometidos pelos militares, inclusive para autoridades de outros países, realizou desfiles de moda com temas de protesto, fez discursos e levou muitos a reflexão.  

Zuzu Angel
Essa mulher de coragem percebeu, por meio da dor, que o regime político vigente no Brasil na época militar colocava em risco os mais importantes valores humanos.

No dia 14 de abril de 1976, Zuzu Angel morre em um acidente de carro no Rio de Janeiro. Uma semana antes do acidente deixou uma carta, na casa do músico e escritor Chico Buarque de Hollanda, em que escreveu: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho".

Chico Buarque para homenagear a memória da amiga e ao mesmo tempo marcar, por meio da arte, aquele terrível momento da nossa história, compôs a música Angélica:


“Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?

Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?

Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?

Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?

Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar."


Prefiro a luz tênue da lamparina à terrível escuridão das torturas, censuras, abusos. 

Iuri Simões - 23/03/2014