Cinquenta anos atrás várias pessoas foram às ruas na chamada
“Marcha da família com Deus pela Liberdade”, contra o governo João Goulart,
considerado uma ameaça comunista. Esses grupos conservadores deram força e
incentivo para a intervenção militar no Brasil, que durou 21 anos. A mesma
marcha foi reeditada ontem (22/03/2014) na Praça da República em São Paulo, com
o objetivo de levar uma carta ao Exército pedindo nova intervenção militar no
Brasil, em nome da família e da pátria. Os manifestantes marcharam sob o grito:
“não queremos eleição, queremos intervenção". Alguns dos seguintes pontos
foram defendidos pelos conservadores: intervenção militar no governo,
valorização da família tradicional, proibição completa do aborto, proibição da
legalização das uniões homossexuais, preponderância dos valores religiosos.
Estamos em uma democracia constitucional, é legítimo o direito desse grupo protestar,
mas nos cabe uma importante reflexão, a ditadura militar resolveria mesmo os
problemas do Brasil? Teríamos uma vida melhor? Uma sociedade melhor?
As forças armadas governaram o Brasil por 21 anos, de 1964 a
1985, período que ficou marcado por obras faraônicas, regadas pelos
tradicionais superfaturamentos, algumas trouxeram benefícios para o país,
outras foram verdadeiras tragédias. No campo econômico da mesma forma, êxito em
uma fase, tragédia em outra. No geral a gestão militar foi similar a tradição
brasileira, muita corrupção, pouca organização e planejamento, excesso de
burocratização, ou seja, nada de novo, nem de revolucionário.
Qual a grande diferença entre o governo da ditadura militar
e a democracia, baseada no Estado de Direito e na Ordem Constitucional que
temos hoje? Ai entra o ponto fundamental, a ditadura implementou de forma ampla
a censura, em todos os aspectos, limitando a liberdade de expressão, de
pensamento, de manifestação. Adotou a tortura como instrumento padrão do Estado
contra os opositores e aqueles considerados subversivos. Exilou vozes
contrárias e críticas ao regime. Estabeleceu o medo como pilar fundamental e suprimiu
qualquer pensamento divergente ou qualquer questionamento por mudanças.
Deputado Ulysses Guimarães ao promulgar a Constituição da República |
Não digo que a democracia seja perfeita, mas possibilita uma
construção coletiva. É claro que o governo nem sempre será aquele que queremos,
mas temos a possibilidade de questionar, de protestar, de criticar, de propor
mudanças e de gradativamente firmar uma sociedade melhor. Na promulgação da
atual Constituição Federal, Ulysses Guimarães proferiu a seguinte frase: “Será
luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados". Não é a
Constituição perfeita, mas possibilita liberdade, respeito, proteção a direitos
e o sonho de dias melhores.
Tem um exemplo que demonstra que não vale a pena entrar
novamente na escuridão da ditadura. A luta de Zuzu Angel escancarou a face
cruel dos militares. Ela foi uma famosa estilista brasileira, com
reconhecimento internacional, que pouco importava com o regime de ditadura
militar no país, não afetava a sua vida ou profissão, ela ouvia falar das
prisões, exílios e torturas, mas a vida seguia relativamente normal.
Tudo mudou completamente para Zuzu Angel quando o seu filho, Stuart
Jones, estudante de economia, filiou-se ao MR-8, grupo que combatia a ditadura
militar. Stuart foi preso em 14 de abril de 1971, torturado e morto pelo Centro
de Informações da Aeronáutica (CISA) e dado como desaparecido pelas autoridades.
Após o desaparecimento do filho, Zuzu começou um
enfrentamento com a ditadura pelo direito de poder pelo menos velar e enterrar
o corpo de Stuart. Ela que circulava pela alta sociedade passou a denunciar os
abusos cometidos pelos militares, inclusive para autoridades de outros países, realizou
desfiles de moda com temas de protesto, fez discursos e levou muitos a
reflexão.
Zuzu Angel |
Essa mulher de coragem percebeu, por meio da dor, que o regime
político vigente no Brasil na época militar colocava em risco os mais
importantes valores humanos.
No dia 14 de abril de 1976, Zuzu Angel morre em um acidente
de carro no Rio de Janeiro. Uma semana antes do acidente deixou uma carta, na
casa do músico e escritor Chico Buarque de Hollanda, em que escreveu: "Se eu
aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do
meu amado filho".
Chico Buarque para homenagear a memória da amiga e ao mesmo
tempo marcar, por meio da arte, aquele terrível momento da nossa história, compôs
a música Angélica:
“Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar."
Prefiro a luz
tênue da lamparina à terrível escuridão das torturas, censuras, abusos.